O MELHOR EMPREGO DO MUNDO, por Isloany Machado

Conheci o texto "O melhor emprego do mundo" de Isloany Machado por indicação de Rai Lima, que o postou no mural do blog Caçadores de Bibliotecas. Geralmente, o que recomendam dou uma olhada e se gosto vou até o fim. Com o texto da Isloany foi assim, li de um só fôlego e por ter achado tão bacana e relevante solicitei à autora autorização para compartilhar entre colegas. Trata de uma visão de alguém de "fora", sobre o fazer bibliotecário e sua importância na intermediação do acesso à informação. Uma reflexão sobre o profissional a frente do setor de referência, muito diferente do que expressou Luís Antônio Giron em seu "Dê adeus às bibliotecas". O texto desenvolve também uma posição de responsabilidade usuária, de cumprimento de direitos e deveres no ambiente das bibliotecas. Muito bom!


...............................................................................................................................
O MELHOR EMPREGO DO MUNDO

Outro dia fui à biblioteca devolver um livro. Era um compêndio de psiquiatria enorme e muito pesado, meus braços já estavam ficando moles de carregá-lo. Quando me encostei ao balcão para devolvê-lo encontrei um bibliotecário que devia contar com um pouco mais de 60 anos. Era um senhor de olhos azuis que brilhavam, mas notei que o brilho não era por causa da cor.

Eram dois olhos contornados por uma rede de pequenas fendas, umas paralelas, outras entrecruzadas. Sobre seu nariz pousava uns óculos de aros escuros com o fio de silicone envolvendo a nuca do bibliotecário. Lembrei que quando comecei a usar óculos, eu queria usar a cordinha, mas alguém me disse: “isso é coisa de velho!”. Achava o máximo deixar os óculos caídos despretensiosamente sobre o peito. 

Hoje penso que isso não é coisa de velho, é coisa de quem não pode ficar longe da possibilidade de ver o mundo pelo avesso, com mais nitidez. Eu estava falando do brilho dos olhos dele. Então, não vinha do azul, nem da juventude. O brilho vinha de uma gritante curiosidade pelo saber. 

Quando eu cheguei ele estava folheando “A história da loucura”, de Foucault. Havia uma pilha de livros devolvidos e o bibliotecário, sábio que era, sempre os folheava para saber cada vez mais. O brilho vinha de uma escancarada alegria. Ele me perguntou: “Por que vai devolver o livro? Não gostou?”. Eu ri e disse que já havia lido todo ele (mentira, pois como eu disse, era enorme). Então ele me perguntou se eu já sabia a nova regra de devolução de livros na biblioteca: “Agora, quando o aluno devolve o livro, a gente abre aleatoriamente e faz uma pergunta. Tá preparada?”. 

Eu ri. Fui contagiada pelo bom humor daqueles sulcados olhos risonhos. Imediatamente pensei que ele devia ser mesmo muito feliz, pois tinha o melhor emprego do mundo. Antes que me chamem de alienada, vou dizer o porquê de pensar isso. Não disse que ele tinha o melhor salário do mundo, mas que tinha o melhor emprego do mundo. Todos os livros passam por suas mãos e ele pode saber de muita coisa. Invejei o bibliotecário. 

Imaginei que ele deve ser como aqueles enólogos (especialistas em vinho) que reconhecem um bom livro pelo cheiro. Pensei que deve ser prazeroso folhear um livro antigo e ler uma palavra com algum acento que já não se usa mais devido a um acordo ortográfico. Também deve ser fantástico descobrir entre as folhas algum bilhete esquecido, até mesmo uma traça curiosa, ávida por devorar livros, que tenha sido cruelmente esmagada: um fóssil de traça. Até os espirros valem à pena. Imaginei ainda aquele bibliotecário devolvendo, no final da tarde, aqueles livros nas suas estantes de origem. 

Os livros vizinhos já estariam tristonhos com a presença da ausência de seu companheiro de saber. Além de tudo, o bibliotecário é uma espécie de médico de livros, pois quando eles voltam machucados pelas mãos do aluno, despedaçando-se, o bibliotecário cuida deles, cola suas feridas e os deixam uns dias em repouso. Alguns voltam tão machucados que chegam a perder suas capas. O médico da biblioteca é um cirurgião plástico, ele faz uma capa nova para seu paciente e deixa-o remoçado. Pensei que à noite, todas as noites, deve haver festa quando as portas da biblioteca se fecham.

Os livros comemorando o retorno de seus velhos amigos. É preciso comemorar pelo alívio que sentem ao saber que seu amigo não ficou eternamente perdido na casa de algum aluno displicente ou larápio, e que não voltou mutilado ou aos pedaços. Saí de lá aliviada, pois aquele livro tão pesado que já estava com a devolução atrasada há mais de trinta dias, devia estar sendo esperado com saudades em toda a estante de psiquiatria. Fiquei triste com a longa suspensão que tomei, pois agora não poderei fazer empréstimo tão cedo, mas achei que, diante do estrago causado, eu mereci a suspensão. Então os olhos faceiros e brilhantes do bibliotecário me deram alento.


..........
A autora é Psicóloga Clínica (CRP 14/03820-0) - Psicanalista membro do Fórum do Campo Lacaniano de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos, pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestranda em Psicologia pela UFMS. Despensadora da Ciência e costuradora de palavras por opção. Campo Grande, MS, Brasil. É editora do Blog Costurando Palavras, onde está contido esse e outros bonitos textos.


Foto: Giovanna Consentini

Comentários

  1. Muito lindo, So! Obrigada por esse presente! Bjs bjs bjs

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Fico contente que tenhas gostado Raquel. por que algo bonito tem que ser compartilhado e quando é recebido como um presente...mas gostoso ainda. Beijoooooooo

      Excluir
  2. adorei o texto, envolvente! Visitarei o Costurando Palavras.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que bom Anônimo! Recomendo no "Costurando Palavras" a leitura de "Lamentações de um piolho morto" e "Um bom remédio para constipação verbal".

      Excluir
  3. Soraia, fui ler o tal texto do jornalista e fiquei indignada com a capacidade de uma pessoa tão "esclarecida" produzir uma coisa assim. É triste pelo fato da generalização e pela falta de respeito com os bons profissionais. Eu escrevi esse texto "O melhor emprego do mundo" sem nem saber desse texto do jornalista. Agora entendo a repercussão que meu texto teve, parece que a classe profissional de vocês foi gravemente ferida por palavras tão duras desse homem. Espero que ao menos meu texto sirva de alento à essa categoria profissional tão bela que é a dos bibliotecários. Eu também não sou nenhuma especialista em saber exatamente sobre o fazer do bibliotecário, mas tenho muito respeito.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pois é Isloany Machado, esse cara, mexeu com nossa classe profissional por expressar uma opinião em que generalizava a todos de forma negativa e colocando em xeque o valor dos espaços de bibliotecas públicas. Existem muitas pessoas que apenas trabalham como funcionários públicos em bibliotecas (a maioria sem formação na área) e são vistas como bibliotecários. Como em todas as profissões há excelentes profissionais e outros não tão envolvidos ou dedicados e por esse motivo a colocação dele caiu de forma tão injusta.

      Pensar a Biblioteconomia apenas do ponto de vista do acesso ao livro impresso ou do serviço de referência é um enorme engano. Recomendo a qualquer um aprofundar um pouco a leitura sobre o tema. Quanto ao seu texto, o legal dele é a leveza e a visão despretenciosa sobre uma profissão de nos últimos tempos tem dado o que falar! Forte abraço!

      Excluir

Postar um comentário